14/01/2010

A agonia do SUS


O SISTEMA Único de Saúde e as suas mazelas estão nas manchetes como nunca antes em sua curta história neste país. As filas, as mortes, as carências, os choros, as greves. Mas em nenhuma das manchetes seus grandes feitos são realçados: os milhões de procedimentos, desde os mais simples até os mais especializados, nada chega ao conhecimento da imensa legião de usuários e adeptos e que fazem a inveja de praticamente todos os países do mundo.
Para um país marcado pela ação patrimonialista, pelo autoritarismo, pela concentração de renda e pelo uso da doença como forma de enriquecimento, foi muita ousadia a aprovação de uma proposta política universal, integral, democrática e humanista.
Com subfinanciamento crônico, deflagrou-se um dos mais violentos ataques jamais praticados contra aquela que consideramos a maior conquista da história recente do povo brasileiro. O SUS foi colocado à disposição dos grupos hegemônicos políticos e econômicos, que se apoderaram da sua gestão e dos seus destinos, promovendo um saque sem precedentes. Nomeações clientelistas e oportunistas fizeram o trabalho. Desmontaram o que havia de rede pública e de componentes estratégicos da atenção primária e especializada.
Num segundo momento, promoveram um processo de privatização jamais visto no Estado brasileiro, por meio da sistemática compra de serviços, concomitante à desestruturação do setor público.
Em seguida, avançaram na privatização também da gestão do trabalho, por meio dos processos de terceirização de trabalhadores em todos os níveis de formação e qualificação. Mas os inimigos do SUS não estavam satisfeitos. Partiram para o último, definitivo e mortal golpe: o processo de privatização da gerência dos serviços que compõem o patrimônio público, sob a alcunha de “parceria” e “colaboração” com o setor privado.
Sempre tivemos claro que uma proposta abrangente, transformadora, ambiciosa e democrática como o SUS só seria viabilizada se ele fosse predominantemente público, por meio de um financiamento adequado, com a prioridade absoluta para a promoção da saúde, com carreira única, gestão profissionalizada e, por fim, democrática por excelência, conceitos que fazem parte do seu arcabouço jurídico.
Os adversários do SUS fizeram tudo exatamente ao contrário. Daí os graves problemas que o sistema enfrenta e que são utilizados como argumentos para o golpe definitivo.
Vivemos, em consequência de tudo isso, uma grande crise de financiamento, modelo de atenção, relação público-privada, gestão do sistema e de trabalho e controle social, tendo como crise maior e de sustentação geral a de impunidade.
O discurso do momento é a necessidade de flexibilizar e tornar mais eficiente e moderna a gestão. E isso só seria possível com a realização de “parcerias” e “colaborações” com o setor privado. Nunca havíamos visto tantos editoriais, entrevistas e discursos nem tanta gente, inclusive alguns que fizeram a reforma sanitária, defendendo com tanta veemência as “parcerias”, as “colaborações” e a “modernização do SUS”.
À revelia da lei, entregam de maneira criminosa a grupos privados o sistema em toda a sua estrutura, num processo que, além de burlar a Constituição Federal, institucionaliza, aperfeiçoa e aprofunda a privatização do Estado brasileiro naquilo que há de mais sagrado: a vida das pessoas.
O Conselho Nacional de Saúde cumpre o seu papel de defesa do SUS e da população brasileira e apresenta ao governo e ao Legislativo as propostas: regulamentação da emenda constitucional 29; regulamentação do parágrafo 8º do artigo 37 da Constituição, que trata da autonomia administrativa e financeira dos serviços; regulamentação do inciso V do artigo 37 da Constituição, que trata da profissionalização da gestão; flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal para a saúde; criação da carreira única da saúde com responsabilidade tripartite; gestão participativa, humanizada e democrática; serviço civil em saúde durante dois anos para todos os profissionais graduados na área; um projeto nacional de cooperação das três esferas para estruturar as redes de atenção primária e de serviços especializados nos municípios em todo o país.
Essas são propostas que têm sintonia com os princípios do SUS e que, se implementadas, podem fortalecê-lo e consolidá-lo plenamente.
FRANCISCO BATISTA JÚNIOR, farmacêutico, pós-graduado em farmácia pela UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), é presidente do Conselho Nacional de Saúde e servidor do hospital Giselda Trigueiro, da rede do Sistema Único de Saúde do Rio Grande do Norte.
Fonte: Folha de S.Paulo, 13/01/2010

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