Em vez de termos a sociedade arcando com os custos que deveriam ser dos planos, teremos convênios ajudando a financiar a saúde pública
O Estado de São Paulo acabou de regulamentar uma lei que permite que hospitais geridos por organizações sociais possam cobrar dos planos de saúde, e somente deles, pelo atendimento dado gratuitamente a seus conveniados.
Como esclarecemos por diversas vezes, trata-se de uma ação de justiça social. A lógica da medida é simples: na atual situação, uma pessoa que pagou a vida inteira por um plano de saúde, no momento em que mais precisa, acaba procurando o atendimento altamente especializado da rede hospitalar pública. Nesse quadro, os convênios jamais pagam a conta.
Recebem de seus clientes, mês a mês, ano a ano, enquanto eles estão saudáveis, e não arcam com as despesas quando estão doentes.
Quem paga a alta conta, que deveria ser paga pelos planos de saúde, portanto, é a sociedade, é o Sistema Único de Saúde. Parece justo? Para algumas pessoas, parece que sim.
No artigo "Paulada no SUS", de Ligia Bahia e Mário Scheffer ("Tendências/Debates", 22/7), duros ataques à medida são proferidos. Não discutimos aqui as intenções dos autores, sabidamente defensores de um atendimento de qualidade e gratuito para a população.
Discute-se, isso sim, a forma como faremos do SUS, cada vez mais, um sistema que possa atender a todos, com excelência e agilidade.
Dizer que a regulamentação da lei beneficiaria os convênios é ignorar, a um só tempo, as vantagens decorrentes da atual situação para os planos de saúde e as vantagens que iremos obter para o SUS com essa alteração. É fazer, ainda que de forma involuntária, o jogo dos planos privados.
Por serem geridos por organizações sociais, hospitais como o Instituto do Câncer Octavio Frias de Oliveira (Icesp) não poderiam ter o ressarcimento feito por meio da lei federal que permite essa prática.
Ou seja, estavam impedidos legalmente de cobrar dos planos de saúde pelo tratamento dado a seus conveniados. Com a nova lei, modificamos essa situação.
Hoje, a cada cinco pacientes do Icesp, um possui convênio. A situação se repete em outros hospitais. Insisto: o atendimento a conveniados já ocorre nos nossos hospitais.
Todos têm direito ao atendimento público gratuito, e isso jamais será alterado. O que buscamos é corrigir a atual distorção. E corrigiremos.
Além disso, alguns pontos vêm sendo ignorados pelos críticos da medida, embora estejam expressos na lei. Os hospitais não poderão fazer reserva de leitos, consultas ou qualquer outro atendimento em benefício do paciente conveniado. Não haverá distinção entre pacientes do SUS e de planos de saúde.
Não haverá, portanto, a "dupla porta". A correção dessa distorção trará uma nova fonte de recursos a esses hospitais públicos.
Todas as verbas advindas dessa medida terão que ser investidas necessariamente no atendimento dos pacientes, na ampliação e na melhoria dos hospitais. Isso também está expresso na lei. Assim, em vez de termos a sociedade arcando com os custos que deveriam ser dos planos, teremos os convênios ajudando a financiar a saúde pública, uma vez que também se beneficiam do SUS. De fato, parece justo.
A defesa do SUS não se faz apenas com palavras, mas com ações e medidas concretas. Jamais nos furtaremos a tomar decisões que sabemos ser justas e que trarão benefícios à população. Estamos abertos ao debate, mas com a convicção de quem trabalha diuturnamente pela saúde pública. E que jamais deixará que o SUS seja vítima de uma paulada. Venha de onde vier.
GIOVANNI GUIDO CERRI, médico e professor titular da Faculdade de Medicina da USP, é secretário de Estado da Saúde de São Paulo.